segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O porão

Ranger de tábuas. O que via era seu sapato. As linhas, as dobraduras, já estavam  marcadas no couro. E, quando andava rangiam, só não sabia se era o assoalho ou os sapatos ou uma sinfonia dos dois juntos, escolhendo o silêncio de um para soar o barulho do outro.
A agonia crescia no peito, olhando pela janela, nunca - pelo menos não lembrava - de ter aquela sensação, mesmo com todo um campo aberto em sua frente.
"Trem mais esquisito" pensou. Continuou rodando. E, como cabeça vazia é oficina do diabo, começou a espetar o capiroto e queria resposta. Da dúvida, surgiu histórias, sem pé, nem cabeça.
E, por mais, que dissesse pra si mesmo: "Para de pensar bobeirices, homem" a cabeça estava a todo vapor. O capeta lá, espetando! E, ele, Heveraldo tentando afugentar o coisa ruim.
Aí resolveu ir a cozinha e tomar água com açucar. "Dona Noca, diz que é bom!"
"E se eu colocar um pouquinho de cachaça?" Mas, pensou, que a beata, não aprovaria. Pegou o copo no alto da prateleira, tava meio engordurado, mas servia.
Pegou água do pote de barro e acrescentou o açucar cristal. Também tava meio empedrado, mas deixa pra lá! E mexeu com o dedo, pois não achou colher. Num gole só, como se aquele ato fosse salvar sua vida, deglutiu...mas entrou no buraco errado e " os gragumilos engasgaram-se" repetiu o pobre coitado do homem atormentado. Tossiu tão forte que escarrou longe! Mas pelo menos livrou-se do desespero. Já não mais se aguentava, quando a porta rangeu - tudo ali rangia? E pelo estalo do degrau, meio suave, meio desconfiado, viu que era Nilita.
Correu a ficar sentado na mesa da cozinha, pegou o jornal e fingiu ler, embora as letras se embaralhassem em sua frente.
Ela, calma, como sempre, entrou, olhou pra ele, se aproximou, beijou sua testa e disse: " Tudo bom?" Ele, resmungou "é tá." Ela assentiu e saiu que nem pluma pro quarto. Ele se virou bem devagar e cresceu em seus olhos a imagem mais horrenda de sua vida, no mesmo momento tonteou, firmou a vista, mas ela já tinha ganhado o corredor.
" A costura da saia tá torta" passou a mão na testa e o suor começava a aflorar.
"A saia tá torta" Espremeu os cabelos. " Ela tirou a saia"
Nessa última fala, ele se ouviu e tudo pareceu distante, tranquilo e sedoso.
Ele se levantou, foi até o armário, abriu a gaveta que também rangeu. Bem no fundo, onde só havia sombra, tirou o facão da bainha. Passou o dedo, viu que não tinha muito corte. Mas sorrindo, já um sorriso demente, balbuciou:
"Assim já serve"

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