quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Calçada pela metade.

Quantos barulhos são necessários? Urgia constantemente a vontade incontrolável de sacudir o corpo feito batedeira. Dava tanta agonia que puxava peles e mais peles da tão massacrada unha.   Ou melhor dos cantinhos das unhas. E deixava sangrar, num vazamento infindavél. Dava-lhe prazer. Assim era sua vidinha. Acordava. Passava um pente molhado pra alisar o cabelo. Jogava uma água nos cantos dos olhos para espantar as remelas. Vestia muitas vezes a mesma camisa ao contrário pra disfarçar - pensava  ele - o amassado. E saia para tomar café no bar. De lá, sentava no mesmo banco pra tomar um solzinho, quando tinha. Ficava olhando os dedos dos pés nas chinelas maltrapilhas e ficava a desenhar ondas do mar - que nunca vira - na areia amarronzada do parque abandonado. E, assim, ficava até o sol esquentar a meia careca, o que denunciava que já devia ser meio dia. Voltava para casa sempre pela mesma calçada. E de longe sentia o cheiro de ovo a fritar na frigideira. Sentava na mesa vestida de meia toalha e almoçava. Comia sempre pão com banana não importava se fosse ovo, macarrão, feijão com peixe ou dobradinha. Depois espreguiçava as canelas finas por baixo da toalha e ia para o quarto tirar uma soneca. Acordava suado e pensava: passei da hora. E levantava num sobresalto. Então olhava o rosto no espelho. Alisava a pele como se pudesse reverter o tempo.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Seria simplesmente assim.

Eu poderia gerar qualquer coisa, mas dependeria de uma iluminação divina que dissesse: Pode ir por aí, criatura confusa! Então, olharia pro chão coberto de estalantes e secas folhas e iria...iria fertilizar o mundo, enchê-lo de colorido, de cheiros acredoces, divertidos, de cortinas brincalhonas, de tortas de banana muito açucaradas e soladas, de risada contagiantes, de jogos de xadrez jogados em fim de tarde chuvosos em plena varanda com vista pro infinito e muito frio arrepiando os pelos das canelas.  
Produziria muitas xícaras de chá com canela, chocolate granulado, rios que congelam os dedos dos pés e deixam ver os peixinhos mordiscá-los. Colheitas inteiras de margaridas e lírios. 
Finalmente cederia a minha mais iluminada sina, a de escrever anos a fio, seguindo o sangue das minhas veias. Relataria tudo, sem sombra de dúvida, iria pelas palavras desenhando os perfis, criando outros, fazendo brotar desse terreno muitas vezes árido um pouco de folhagem verde, fresca e reluzente.
Iria gerar mais um jardim, um canteiro, um quarteirão. Não importa. A vastidão é larga, é imensa, é completamente espreguiçada de mim mesma. E vou me esticando e abraçando com as ponta dos dedos os sonhos mais distante, mais amados, mais...mais...até estalar os ossos.