quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Calçada pela metade.

Quantos barulhos são necessários? Urgia constantemente a vontade incontrolável de sacudir o corpo feito batedeira. Dava tanta agonia que puxava peles e mais peles da tão massacrada unha.   Ou melhor dos cantinhos das unhas. E deixava sangrar, num vazamento infindavél. Dava-lhe prazer. Assim era sua vidinha. Acordava. Passava um pente molhado pra alisar o cabelo. Jogava uma água nos cantos dos olhos para espantar as remelas. Vestia muitas vezes a mesma camisa ao contrário pra disfarçar - pensava  ele - o amassado. E saia para tomar café no bar. De lá, sentava no mesmo banco pra tomar um solzinho, quando tinha. Ficava olhando os dedos dos pés nas chinelas maltrapilhas e ficava a desenhar ondas do mar - que nunca vira - na areia amarronzada do parque abandonado. E, assim, ficava até o sol esquentar a meia careca, o que denunciava que já devia ser meio dia. Voltava para casa sempre pela mesma calçada. E de longe sentia o cheiro de ovo a fritar na frigideira. Sentava na mesa vestida de meia toalha e almoçava. Comia sempre pão com banana não importava se fosse ovo, macarrão, feijão com peixe ou dobradinha. Depois espreguiçava as canelas finas por baixo da toalha e ia para o quarto tirar uma soneca. Acordava suado e pensava: passei da hora. E levantava num sobresalto. Então olhava o rosto no espelho. Alisava a pele como se pudesse reverter o tempo.

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