sexta-feira, 19 de março de 2010

Entretanto...

              Café. Seria talvez um deslize do fígado ou aquele café estava com gosto de  melado? Coçava a cabeça enquanto tentava decifrar tão difícil questão.
Tinha que sair daquela cadeira, mas o corpo atualmente teimava em não oberdecer. E, ali, ficava quase criando mofo, de tanta falta de ânimo.
Por fim levantou-se. Bocejou, olhou em volta, tossiu, fez que ia e não foi. Cambaleou, quase caiu. Mas deu o primeiro passo. Arrastando os chinelos, foi até a janela.

               O dia era nublado, mas não fazia calor. Tinha chovido um pouco e o chão da calçada estava molhado. Em algumas poças refletiam rostos, imagens que passavam rápidas na rua. Fazia um silêncio estranho, pensou. Aquela hora a cidade devia fervilhar, porém estava um silêncio que quase dava para pegar. Era tão real, que dava vontade de retirar com as mãos um pouco, ou melhor, um pedaço daquele silêncio e guardar. Quem sabe na gaveta, para quando mais tarde o zumbido estridente dos carros, das buzinas, das pessoas falando, das sirenes, do estardalhaço da grande cidade atrapalhar seu sono, ele o usar um pouquinho.
           
              O som do silêncio, quantas melodias podia fazer, quantas canções poderia compor, quantos mundos, quantas estradas, quantas mulheres, quantos beijos, quantos olhares, carinhos, tapas, entremeios, quantos...silêncios...quantos?

              Era verdade, finalmente entendeu, o café estava com aquele gosto. De silêncio? Não. Com gosto do melado que - ironicamente - esqueceu que usava toda manhã.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ele morava na mesma casa desde que nascera. Conhecia pouco do mundo. Os dias eram iguais. Acordava quinze para seis. Espreguiçava - sempre do mesmo lado - descia da cama sempre a perna direita, depois a esquerda. Subia o tronco devagar, não raramente, perdia o equilíbrio, e tinha que superar suas forças para não tombar na cama. A parte mais complicada era colocar os pés no chão e saber - muito angustiado - que teria que depositar nos seus pobres tornozelos, o peso do seu corpo.  
Seguia para a cozinha, abria a janela - primeiro a dá esquerda, depois a em cima da pia - e respirava. Abria a torneira e enchia a chaleira de água para o café.
Ia para o banheiro em seguida. Mas, nesse dia, algo estranho aconteceu. Ao passar pela soleira da porta sentiu uma presença atrás dele. Uma espécie de frio na espinha. Arrepiou-se dos pés a cabeça. E teve a nítida, quase certeira, visão de uma moça no corredor. Ela olhou bem fundo nos seus olhos e como se dançasse, deslizou até bem perto dele. Seu hálito era quente e tinha um suave perfume de flores. Ele não se espantou, apenas por uns intantes fechou os olhos pra melhor sentir todo o momento. Quando abriu, sentiu algo frio que envolvia seu corpo. Não conseguia se mexer. Apenas os olhos se moviam. E assim ficou - não bem sabe por quanto tempo - dormiu, acordou e continuava lá. E dormiu mais ainda. Foi acordado de sobresalto por um estrondo e pensou: Finalmente deram por minha falta. Mas no mesmo momento, pensou: Mas quem pode ter se lembrado de mim? Com o olhar turvo, viu dois homens se aproximarem, eles o olhava com uma cara estranha. Examinaram, mas nada falaram. Anotavam, andavam pra lá e pra cá. E nada faziam. Por que não o tiravam daquela incomoda posição? O chão era frio, o corpo estava frio. Novamente o sono lhe caia, tentando novamente cerrar seus olhos, mas ele lutava...Estanhou mais ainda quando os mesmos homens tentaram sufocá-lo com um lençol e bruscamente o levantaram e jogaram numa caixa. Seu corpo estalou ao bater no fundo da caixa e com seu grito surdo, ele finalmente foi conhecer o mundo.